terça-feira, 6 de maio de 2008

A montanha mágica



Queria falar um pouco sobre o meu livro predileto: 'A montanha mágica' (1924) de Thomas Mann. Ele é um livro bojudo, daqueles que ficam em pé na parede. São 992 páginas de longas descrições e muita introspecção. Da primeira vez que tentei lê-lo, parei lá pela página 400. Desisti, mas depois de um ano tentei de novo e comecei da primeira página... Da segunda vez, eu consegui chegar ao final - depois de 6 meses. Foi como um namoro, quando terminei, a separação foi dolorida: uma lágrima rolou pela minha face e um pouco de sangue apareceu em minha garganta. Para entender esse último sintoma, é necessário conhecer a história do livro e de Thomas Mann (na caricatura ao lado).






O autor (1875-1955) é filho de um rico comerciante alemão e uma brasileira (!) e nasceu na cidade de Lübeck, no norte da Alemanha. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1929 e é considerado um dos maiores romancistas do século XX. Sua inclinção à literatura é creditada à influência de sua mãe brasileira - Julia. Leia mais sobre Thomas Mann aqui .




*** AVISO: A LEITURA DO FINAL DESTE POST APRESENTA ALGUNS DETALHES DO LIVRO (spoilers). CONTINUE POR SUA PRÓPRIA CONTA E RISCO ***






'A montanha mágica' começa quando Hans Castorp, jovem alemão recém-formado em Engenharia, decide visitar um primo internado com tuberculose no sanatório Berghof, situado nos Alpes Suiços na cidade de Davos (foto acima). É bom lembrar que naquela época, um tratamento freqüente para os tuberculosos era a chamada terapia do repouso. As pessoas ficavam internadas nessas instituições chamadas 'sanatórios', geralmente localizadas na altitude das montanhas e passavam a viver isoladas da sociedade comendo, dormindo e seguindo uma rotina de exercícios leves. Castorp resolveu empreender essa viagem antes de começar um estágio num estaleiro em Hamburgo e seguir sua carreira profissional. A intenção inicial era ficar três semanas, mas ele tem sua saúde fragilizada a ponto de ser diagnosticado com tuberculose também, e acaba ficando internado lá por sete anos. Essa inesperada transformação de 3 semanas em 7 anos nos dá a pista de um dos temas centrais do livro: o tempo. No começo, há uma introdução, com o título 'Propósito', em que o autor conversa com os leitores. Leia:



"Não será, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminará a história de Hans Castorp. Não lhe bastarão para isso os sete dias de uma semana, nem tampouco sete meses. Melhor será que ele desista de computar o tempo que decorrerá sobre a Terra, enquanto esta tarefa o mantiver enredado. Decerto não chegará - Deus me livre - a sete anos."


OS PERSONAGENS


A história ocorre antes da Primeira Guerra Mundial e vários personagens representam algumas posições políticas e ideológicas da época.

Hans Castorp representa o fascínio pela morte e pela doença. Com o personagem principal, Mann escreve sobre as tendências auto-destrutivas do ser humano, sobre a parte existente em cada um de nós que não quer fazer absolutamente nada e nos dirige à morte, ao repouso definitivo. Num trecho do livro, o personagem lembra quando foi reprovado antecipadamente numa matéria e sentiu uma extrema liberdade, pois poderia fazer o que quiser no resto do semestre. Castorp deixa-se levar por suas tendências até que tem uma experiência pessoal na montanha e realiza uma transformação alquímica. Nas palavras de Castorp:


"Para a vida há dois caminhos: um é o usual, direto e ajuizado. O outro é mau, ele passa pela morte e este é o caminho genial."




Nesse trecho fica clara a idéia do autor sobre a necessidade do contato com a experiência da doença e da morte no caminho para a saúde, o saber e a vida. Castorp percorre, durante o livro, uma trajetória que o leva da prosaica experiência burguesa da vida de um engenheiro para uma elevação moral, espiritual e sensual, simbolicamente representada por sua subida aos Alpes Suiços.






Settembrini, outro pesonagem importante, representa os ideais do Iluminismo, Humanismo, democracia, tolerância e direitos humanos. Em muitas situações, esse personagem encontra Castorp literalmente no escuro e acende a luz antes de seus diálogos. Ele tenta contrapor à visão mórbida de Castorp valores como a razão e o trabalho e o alerta sobre os perigos de sua atração pela doença, representada por uma paciente do sanatório Berghof chamada Madame Chauchat.





O antagonista de Settembrini chama-se Naphta. Ele é um jesuíta que representa as idéias do radicalismo e extremismo. É possível vislumbrar em seu discurso, elementos fascistas, anarquistas e comunistas. Ele é anti-capitalista e contrário à modernidade, liberdade, individualismo e progresso. Os diálogos entre os dois ocupam muitas páginas e mostram a tensão entre forças liberais e conservadoras na Europa antes da Primeira Guerra Mundial.







Claudia Chauchat, ou Madame Chauchat, é uma personagem que representa a tentação erótica, a luxúria e o amor, de um ponto de vista decadente e doentio. Ela é o principal motivo do prolongamento da estada de Castorp no sanatório. Mann representa aqui a promessa feminina de prazer sexual como uma poderosa motivação para as ações masculinas. Até seu sobrenome em francês significa "gata quente" - chaud chat. Sua aparência física lembra a de uma gata, com seus olhos oblíquos de quirguiz - povo asiático.





Mynheer Peeperkorn, que entra na história posteriormente, é o novo amante de Madame Chauchat e representa o espírito Dionisíaco. É um personagem com extrema força vital e enorme ingenuidade. Ele tem ares de importância, é uma figura poderosa e estranha com seu hábito de nunca completar as frases.





Um dos médicos principais é o chamado Dr. Krokowski, que representa as idéias da nascente Psicanálise no começo do século XX. Ele dá alguns seminários no sanatório sobre essas idéias e escandaliza a todos falando abertamente sobre sexo e sua importância em nossa vida mental, física e afetiva.








Voltemos a um dos principais temas do livro: o tempo. Logo no começo, ao narrar a chegada de Castorp a Davos-Platz, Mann escreveu sobre a relação entre o tempo e o espaço:




"Dois dias de viagem apartam um homem - e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida - do seu mundo cotidiano, de tudo quanto ele costuma chamar seus deveres, interesses, cuidados e projetos; apartam-no muito mais do que esse jovem imaginava enquanto um fiacre o levava à estação. O espaço que, girando e fugindo se roja de permeio entre ele e seu lugar de origem, revela forças que geralmente se julgam privilégio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega, até mesmo, a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção
semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido."




Até na estrutura de seu livro, Mann representa a ambígua relação do ser humano com o tempo. Apesar de empregar a ordem cronológica para narrar a história, sua obra é assimétrica. Nos primeiros cinco capítulos, ele descreve o primeiro dos sete anos de Castorp no sanatório com uma minúcia extrema. Aos outros seis anos, marcados pela monotonia e rotina, ele reserva apenas dois capítulos. Em outra parte do livro, o autor diz que quando realizamos atividades rotineiras, pequenas unidades de tempo, como o dia, parecem passar muito devagar, e, ao mesmo tempo, mal nos apercebemos da passagem das grandes unidades de tempo, como meses e anos.


É isso aí! Espero ter deixado todos curiosos para empreender o projeto de ler este livro! Se tiverem tempo...

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